terça-feira, 5 de novembro de 2013

SHUTTER ISLAND
























intro

Shutter Island (2010) pode ser resumido e rotulado como um filme não-Scorsese, mas tal opinião será sempre redutora perante a obra – até porque o que não é alheio a todas as áreas de criação é a inovação; que surge naturalmente acompanhada com irregularidades na qualidade e lado a lado com uma aceitação intermitente pela crítica e pelo público. O último filme de Scorsese é um objecto estranho na sua obra, mas não é por isso que se classifica como um mau filme, nem por sombras.

crítica

Compramos o último cd de uma determinada banda que já conhecemos e gostamos porque lhe identificamos um estilo e é pela continuidade desse que não abdicamos de termos o seu último trabalho. Qualquer alteração a esse estilo será sempre acompanhado com alguma estranheza. O mesmo se passa no cinema e se em David Lynch o magnífico Uma História Simples (The Straight Story - 1999) constituiu uma quebra consciente com a linha do realizador, Shutter Island não é nem uma quebra óbvia nem sequer uma consciente afirmação da diferença na sua filmografia. Ang Lee prova filme após filme que se pode abdicar absolutamente dum estilo vincado e continuar a fazer bom cinema, saltitando entre obras magníficas e tão diversas como Comer Beber Homem Mulher (Yin Shi Nan Nu - 1994) ou O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain - 2005).

Mas se a crítica e o público se dividiu na recepção ao filme de Scorsese, apelidando-o (a vezes em tom pejorativo) de bizarro, não é sem lhe conhecer a carreira que se pode afirmá-lo de ânimo leve. Martin Scorcese é dos mais consagrados realizadores vivos, responsável por obras primas do cinema como Taxi Driver (1976), O Touro Enraivecido (Raging Bull - 1980) ou Os Cavaleiros do Asfalto (Mean Streets – 1973) onde se encontra uma marca de autor independente, mas deambulou também por filmes onde tal se perde e onde existe um óbvia concessão ao entretenimento e ao establishment como O Aviador (The Aviator - 2004) e Gangs de Nova Iorque (Gangs of New York – 2002). Ao tentar colar-lhe um estilo não pode deixar de se dizer que a sua obra é, não irregular, mas infinitamente versátil - Casino (1995) está, na forma, a milhões de anos-luz de O Cabo do Medo (Cape Fear - 1991). Dito isto, Shutter Island surge menos como o percalço que se assumiu pela pena de alguma crítica e mais como um outro grande filme de Scorsese.

Em Shutter Island desenvolve Scorsese uma história tensa a partir de um argumento intricado que é filmado como se fosse um jogo de plataformas ou um RPG – existe sempre algo a desvendar numa personagem ou algo camuflado por detrás de uma parede. A atmosfera que o realizador proporciona é claustrofóbica e bem ao género dos livros de Paul Auster, entremeados a espaços com sequências de sonho devedoras a Lynch (importa dizer que os produtores iniciaram este projecto tendo em vista David Fincher como realizador). O mais que se encontra como definitivamente característico de Scorsese é a personagem central de Teddy Daniels, tortuoso e sofredor como o fora também Travis Bickle ou Jake LaMotta – a história centrada num homem honestamente disfuncional e quase anti-herói é recorrente em Scorsese. Esta figura central é intepretada por Leonardo DiCaprio num dos melhores papéis da sua carreira (será talvez o novo actor fetiche de Scorsese após De Niro).

Na sequência inicial é-nos revelado que o U.S. Marshall Teddy Daniels e o seu colega Chuck são destacados para resolver o desaparecimento de uma paciente do hospital psiquiátrico para criminosos de Ashecliffe, na ilha de Shutter ao largo de Boston (espaços e geografia são fictícios, tudo foi colado através de CGI e em pós-produção). A instituição assemelha-se a Arkham do Batman de Bob Kane e a ilha, fortaleza-prisão inexpugnável, recorda a Ilha do Diabo presente em Papillon (Papillon – 1973) ou até Alcatraz. O cenário de pequeno universo isolado de ilha-prisão é o ideal ao proporcionar uma densa teia de intrigas e de segredos, que vão sendo desmontados por Daniels enquanto a investigação se desenvolve.

O ambiente não é simpático e romântico como nos filmes de prisão de Frank Darabont (Os Condenados de Shawshank e À Espera de um Milagre, de 1994 e 1999, respectivamente) e o que Daniels descobre é menos conclusivo sobre a investigação e acaba por ser mais revelador do seu passado conturbado por traumas sobre a morte da mulher, sobre a sua presença na libertação do campo de concentração de Dachau e sobre a motivação verdadeira para a sua presença em Ashecliffe. As memórias do seu passado são imprecisas e sobrepõem-se com o crescer do filme – tal como a memória volátil do Valsa com Bashir de Ari Folman (Waltz with Bashir – 2008).

Acabamos por entrever que a investigação de Daniels mais do que tentar em resolver o caso da doente desaparecida, se direcciona a resolver o puzzle que é o seu passado (e percebemos depois, também o seu presente) – assim os fluxos de realidade ou sonho cruzam-se e complementam-se, convergindo num final que certamente arrebatará qualquer cinéfilo que se preze, clarividente ou não.

A identidade fílmica de Scorsese sai intacta num filme de grande qualidade, que conta com um excelente argumento burilado ao nível dos melhores livros/filmes policiais e com consistentes interpretações – além de Di Caprio destaco também Ben Kingsley num forte papel. O final – e longe de mim colocar aqui spoilers – será revelado na tela em todo o seu esplendor e certamente também nas horas seguintes de reflexão e ressaca do filme, em que todos os pequenos detalhes e aparentemente pouco importantes gestos mostrados desde o seu início, terão toda a devida justificação, fechando a deliciosa charada que é este filme.

Rafael Vieira 2010, publicado na Magazine HD, n1 (suplemento Take)

Nota 4

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