intro
Shutter
Island
(2010) pode ser resumido e rotulado como um filme não-Scorsese, mas
tal opinião será sempre redutora perante a obra – até porque o
que não é alheio a todas as áreas de criação é a inovação;
que surge naturalmente acompanhada com irregularidades na qualidade e
lado a lado com uma aceitação intermitente pela crítica e pelo
público. O último filme de Scorsese é um objecto estranho na sua
obra, mas não é por isso que se classifica como um mau filme, nem
por sombras.
crítica
Compramos
o último cd
de uma determinada banda que já conhecemos e gostamos porque lhe
identificamos um estilo e é pela continuidade desse que não
abdicamos de termos o seu último trabalho. Qualquer alteração a
esse estilo será sempre acompanhado com alguma estranheza. O mesmo
se passa no cinema e se em David Lynch o magnífico Uma
História Simples
(The Straight Story - 1999) constituiu uma quebra consciente com a
linha do realizador, Shutter
Island
não é nem uma quebra óbvia nem sequer uma consciente afirmação
da diferença na sua filmografia. Ang Lee prova filme após filme que
se pode abdicar absolutamente dum estilo vincado e continuar a fazer
bom cinema, saltitando entre obras magníficas e tão diversas como
Comer
Beber Homem Mulher (Yin
Shi Nan Nu - 1994)
ou O
Segredo de
Brokeback
Mountain
(Brokeback Mountain - 2005).
Mas
se a crítica e o público se dividiu na recepção ao filme de
Scorsese, apelidando-o (a vezes em tom pejorativo) de bizarro, não é
sem lhe conhecer a carreira que se pode afirmá-lo de ânimo leve.
Martin Scorcese é dos mais consagrados realizadores vivos,
responsável por obras primas do cinema como Taxi
Driver
(1976), O
Touro Enraivecido
(Raging Bull - 1980) ou Os
Cavaleiros do Asfalto
(Mean Streets – 1973) onde se encontra uma marca de autor
independente, mas deambulou também por filmes onde tal se perde e
onde existe um óbvia concessão ao entretenimento e ao establishment
como O
Aviador
(The Aviator - 2004) e Gangs
de Nova Iorque
(Gangs of New York – 2002). Ao tentar colar-lhe um estilo não pode
deixar de se dizer que a sua obra é, não irregular, mas
infinitamente versátil - Casino
(1995) está, na forma, a milhões de anos-luz de O
Cabo
do Medo
(Cape Fear - 1991). Dito isto, Shutter
Island
surge menos como o percalço que se assumiu pela pena de alguma
crítica e mais como um outro grande filme de Scorsese.
Em
Shutter Island desenvolve Scorsese uma história tensa a partir de um
argumento intricado que é filmado como se fosse um jogo de
plataformas ou um RPG
– existe sempre algo a desvendar numa personagem ou algo camuflado
por detrás de uma parede. A atmosfera que o realizador proporciona é
claustrofóbica e bem ao género dos livros de Paul Auster,
entremeados a espaços com sequências de sonho devedoras a Lynch
(importa dizer que os produtores iniciaram este projecto tendo em
vista David
Fincher
como realizador). O mais que se encontra como definitivamente
característico de Scorsese é a personagem central de Teddy Daniels,
tortuoso e sofredor como o fora também Travis Bickle ou Jake LaMotta
– a história centrada num homem honestamente disfuncional e quase
anti-herói é recorrente em Scorsese. Esta figura central é
intepretada por Leonardo DiCaprio num dos melhores papéis da sua
carreira (será talvez o novo actor fetiche de Scorsese após De
Niro).
Na
sequência inicial é-nos revelado que o U.S. Marshall Teddy Daniels
e o seu colega Chuck são destacados para resolver o desaparecimento
de uma paciente do hospital psiquiátrico para criminosos de
Ashecliffe, na ilha de Shutter ao largo de Boston (espaços e
geografia são fictícios, tudo foi colado através de CGI e em
pós-produção). A instituição assemelha-se a Arkham do Batman de
Bob Kane e a ilha, fortaleza-prisão inexpugnável, recorda a Ilha do
Diabo presente em Papillon
(Papillon – 1973) ou até Alcatraz. O cenário de pequeno universo
isolado de ilha-prisão é o ideal ao proporcionar uma densa teia de
intrigas e de segredos, que vão sendo desmontados por Daniels
enquanto a investigação se desenvolve.
O
ambiente não é simpático e romântico como nos filmes de prisão
de Frank Darabont (Os
Condenados de Shawshank
e À
Espera de um Milagre,
de 1994 e 1999, respectivamente) e o que Daniels descobre é menos
conclusivo sobre a investigação e acaba por ser mais revelador do
seu passado conturbado por traumas sobre a morte da mulher, sobre a
sua presença na libertação do campo de concentração de Dachau e
sobre a motivação verdadeira para a sua presença em Ashecliffe. As
memórias do seu passado são imprecisas e sobrepõem-se com o
crescer do filme – tal como a memória volátil do Valsa
com Bashir
de Ari Folman (Waltz with Bashir – 2008).
Acabamos
por entrever que a investigação de Daniels mais do que tentar em
resolver o caso da doente desaparecida, se direcciona a resolver o
puzzle
que é o seu passado (e percebemos depois, também o seu presente) –
assim os fluxos de realidade ou sonho cruzam-se e complementam-se,
convergindo num final que certamente arrebatará qualquer cinéfilo
que se preze, clarividente ou não.
A
identidade fílmica de Scorsese sai intacta num filme de grande
qualidade, que conta com um excelente argumento burilado ao nível
dos melhores livros/filmes policiais e com consistentes
interpretações – além de Di Caprio destaco também Ben Kingsley
num forte papel. O final – e longe de mim colocar aqui spoilers
– será revelado na tela em todo o seu esplendor e certamente
também nas horas seguintes de reflexão e ressaca do filme, em que
todos os pequenos detalhes e aparentemente pouco importantes gestos
mostrados desde o seu início, terão toda a devida justificação,
fechando a deliciosa charada que é este filme.
Rafael
Vieira 2010, publicado na Magazine HD, n1 (suplemento Take)
Nota
4
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